quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Sobre ética‏

Sobre a ética de salvar a própria pele ou sobre a crença de que quando a farinha é pouca, o meu pirão é primeiro.
Os festejos de São João terminaram com olhos lacrimejantes não só atingidos pela fumaça das fogueiras urbanas e traques de estalos, mas pela tragédia que resultou em mortes na av. Paralela. O noticiário já lotado de óbitos causados pela violência do nosso tempo de paz, que já não nos assusta tanto assim, trouxe no fim de semana junino a cobertura de um espetáculo macabro, quando numa ação dita de cinema, assaltantes forçaram um motorista de ônibus a trafegar pela contramão, na av. Paralela, muito conhecida pelo seu intenso movimento, principalmente nos dias de festa e de sol.
Em todos os debates de que participei, seja na Fazenda Grande do Retiro, onde almocei ontem, seja no Caminho de Areia, onde vi o raiar do dia, o senso comum e comoção geral orientaram o julgamento do caso num único ponto: a ousadia, a perversidade e frieza dos assaltantes que de arma em punho (dizem os jornais), obrigaram o motorista a dirigir pela contramão por 4 quilômetros da temida av. Paralela, o que resultou numa colisão frontal com um carro de passeio, no qual viajavam pai e filho, que morreram no local, e, uma mulher que sobrevive em uma UTI de hospital. Não percebi nas avaliações de barzinhos, nem mesmo em outros bairros e meios, alguma referência ao comportamento do motorista, profissional de uma empresa de ônibus.
Mas, violência é assim, desperta comoção e dor, acende raiva, ódio, paixão e compaixão, separadas por linhas brandas.
Caso um médico numa mesa de cirurgia ou num procedimento clínico fosse forçado a liquidar um paciente, mesmo sobre ameaça, agiria legitimamente ao aceitar a proposta de levar o paciente a óbito ?
No conturbado espaço aéreo brasileiro algum piloto cairia de bico com o seu avião, estando sob a mira de revólver ?
Se o motorista do ônibus da Paralela tivesse a certeza que o carro em sua direção transportasse parentes seus, levaria o ônibus até à trágica e última consequência ?
Sei não, mas guardada as devidas proporções, lembrei-me do gesto do tratorista Hamilton que diante de uma sentença judicial desobedeceu-a e não demoliu o casebre de uma família em Valéria. O tratorista encontrou razões para não fazê-lo, talvez as mesmas razões que o bando de Lampião encontrou para não atacar os homens da Coluna Prestes no sertão Brasileiro.
Razões identitárias, causas comuns, razões de vida, valores nobres e fraternos orientados pela ética da vida.
Não desejo para mim e para outros a aventura de uma arma ameaçadora em mãos desesperadas, mas provoco um debate fora da pauta comum, fora do costume e da regra que "faz parte". Posto que não faz parte salvar a própria pele sempre, não é virtude alguma levar sempre a vantagem sem se incomodar com a dor do outro, tão legítima quanto a nossa. É tempo de desobedecer, mesmo quando a ordem vem seguida de um revólver em direção à cabeça. Parece a história dos amigos que corriam num bosque e que diante da ameaça de um tigre faminto, um deles botou o tênis enquanto o amigo espantado perguntava se ele correria mais do o tigre e ele rápido respondeu: mais do que o tigre não, mas correrei mais do que você.
Sei que foi preferível ou impossível evitar outras mortes, diante
da ameaça à própria vida. Se tinha dúvidas que eles atirariam,o motorista, profissional do ônibus, habilitado para tal função, tem a certeza, agora, que duas pessoas morreram sem que a decisão estivessem com elas. Ele decidiu por elas a favor dele.
A sociedade por certo o absolverá, os ladrões não serão culpados pelo acidente de trânsito, não mataram ou quiseram matar, as famílias enlutadas já enterraram os seus e sentem saudades. Saudades de um tempo em que valia a pena conspirar pelo outro, pela outra, saudades de Lampião e de seus jagunços mais éticos do que nós, saudade de Maria Bonita.

Saudades do São João que passava por aqui e deixava olhos
lacrimejantes somente de fumaça da fogueira e dos traques de salão.

Texto escrito em São João de 2007 sobre ética, mas sempre atual e oportuno

Ailton Ferreira

Nenhum comentário: