sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O rap pede passagem

Há dezessete anos Gilberto Gil e Caetano Veloso nos apresentavam o rap “Haiti’, que fala, dentre outras coisas tristes, “do silêncio sorridente de São Paulo, diante da chacina de presos indefesos...Quase todos pretos ou quase pretos, ou quase pretos de tão pobres...”

Vou surfar na onda do rap negro que o sempre jovem compositor baiano canta, para reafirmar que nem tudo é maravilhoso, embora muito seja divino, nas terras de Alaíde do Feijão. A chacina do nosso cotidiano, não é de presos, mas de quase todos negros, pretos e pardos, jovens com idade entre 17 e 25 anos, que são arrancados de nós pela violência urbana cujo trilho parece não ter fim. Como parece não ter fim a imunidade e a contemplação de setores da sociedade que parecem que já normalizaram ou naturalizaram a mortandade de nossos jovens, negros de Salvador.

Já não registramos mais os nomes, bastam os números dos finais de semana: quantos talentos foram assassinados, quantos meninos foram sepultados. Uma lógica nefasta que inverteu a cronologia, porque antes sepultávamos os velhos, com tarefas mais ou menos cumpridas. Agora choramos a morte de futuros engenheiros, advogados, professores, atletas. E não ficamos sem jantar ou sorrir, talvez na certeza de que não seremos atingidos.

Setores da sociedade contemplam a morte de outros, aqueles do lado de lá, merecedores, às vezes de nossa solidariedade tardia, a solidariedade que vem depois da tragédia anunciada, depois da morte, depois do último tiro, afinal são vários os tiros que jogam para a exclusão até o último que inclui na nota triste dos registros policiais.

E por que o silêncio contemplativo de parte da sociedade? Porque essa parte que morre é a herdeira de um País desigual, de uma nação partida, um estado construído sobre bases de desigualdade, onde seres humanos foram convocados para mandar, e outros seres humanos foram convocados para obedecer.

Uma sociedade que hierarquizou pessoas em graus de primeira e de segunda. Uma sociedade ainda acorrentada nas suas matrizes cognitivas – a pior marca do racismo – correntes invisíveis nas cabeças de quem escravizou e de quem foi escravizado. Para uns, cotas de paciência histórica e de convencimento para tê-los como aliados; para outros cotas de políticas afirmativas, cotas de educação, saúde e proteção. Amor e apreciação positiva em fartura. Respeito sem subordinação, oportunidades e reparação das injustiças. É o nosso papel no mutirão da solidariedade que deve chegar antes da catástrofe, antes do último tiro e de um corpo a mais de um jovem talento a menos. O rap pede passagem.

Ailton Ferreira – sociólogo, secretário municipal da Reparação.

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